Manoel Gonçalves Ferreira Filho: “O STF instaurou uma juristocracia” – Paulo Figueiredo

Jurista critica expansão do poder do Tribunal e vê ameaça à democracia

Professor emérito de Direito Constitucional da Universidade de São Paulo, Manoel Gonçalves Ferreira Filho é uma das vozes mais respeitadas da área e autor de obras de referência.

A Oeste, Ferreira Filho avaliou que o Supremo Tribunal Federal (STF) abandonou a contenção e passou a agir como poder supremo do Estado. Para ele, a Corte deixou de se limitar à interpretação da Constituição e assumiu funções de legislador e de governo.

O jurista critica a utilização de princípios vagos, como o da dignidade humana, para justificar decisões contrárias à lei e sustenta que, em várias ocasiões, ministros atuaram em sintonia com interesses do Executivo, configurando governismo. Ele diz ainda que a politização do STF trouxe perda de prestígio institucional e contribuiu para a radicalização do ambiente político.

A seguir, leia os principais trechos da entrevista.

Como o senhor avalia a prática de o Supremo abrir inquéritos de ofício? Existe base constitucional sólida para essa iniciativa?

O STF tem competência, de acordo com o artigo 43 do seu Regimento Interno, para instaurar inquéritos criminais, se ocorrerem infrações “na sede ou dependência do Tribunal”. Isso não foi explicitado quando da instauração do Inquérito 4.781/2019. Igualmente, nesse inquérito, foi designado o ministro Alexandre de Moraes para relatá-lo, sem o sorteio previsto no Regimento. Entretanto, quando foi impugnada a apuração de infrações ocorridas fora da sede ou das dependências do Tribunal, ao apreciar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 572, relativa ao Inquérito das Fake News, o STF “esqueceu” a limitação espacial e o julgou constitucional. O ministro relator designado irregularmente ainda o é até hoje. E, segundo lhe pareceu necessário, abriu vários inquéritos — como o das fake news, já mencionado, e outros, como o das milícias digitais. Assim, é frágil a base do inquérito inicial e dos que dele emanam. Pode-se até dizer que, por serem ilegais (o Regimento Interno tinha força de lei), são nulos. Contudo, quando o guardião da Constituição, o STF, diz que algo é constitucional, não há recurso contra isso, no sistema brasileiro. É isso que o tem levado, quanto ao inquérito mencionado e em numerosos casos, a decidir frequentemente contra a Constituição.

A politização de decisões judiciais tem sido um problema crescente? Como delimitar a fronteira entre interpretação constitucional e ativismo judicial?

A interpretação constitucional não é arbitrária, pois grandes juristas já definiram os seus parâmetros. Nem sempre, todavia, esses parâmetros são seguidos. Um modo hábil para fazer a interpretação dizer o que se deseja é invocar princípios vagos, indeterminados, como a dignidade humana. Este serve para justificar decisões tomadas contra regras estabelecidas pela lei, ou para dar ao relator de uma ADPF, num despacho monocrático, o poder de fixar novas regras que contrariam normas legisladas. Assim, não raro o STF “legisla”. O ativismo é um fenômeno político ou ideológico que às vezes toma conta do Tribunal. Este não se conforma com o que prescreve a lei. Não raro, em despachos monocráticos, pela “interpretação”, estabelece normas segundo o que está na moda ou pelo que entende ser um progresso para a humanidade. Este papel de guia já foi mais de uma vez afirmado por eminente ministro do STF. Não se confunda, todavia, ativismo com governismo, embora este possa ter fundo político ou ideológico. O governismo é, como o termo indica, atender a solicitações do governo para impor em decisões de constitucionalidade ou inconstitucionalidade aquilo que convém ao Executivo, mas não foi obtido ou foi rejeitado pelo Legislativo. Há recente exemplo disso em matéria tributária no caso do IOF. O Tribunal, nesses casos, enxerga inconstitucionalidade ou constitucionalidade conforme o pedido ou a pressão governamental.

Há espaço para o Congresso Nacional reagir a excessos do Judiciário sem romper o equilíbrio entre os Poderes?

A Constituição, ao adotar a separação dos Poderes, prevê que se estabelece um sistema de freios e contrapesos. Esta é exatamente a finalidade da separação. Assim, sempre há um controle sobre atos de um Poder por parte de outro. A Constituição brasileira atribui o controle do Judiciário por meio da responsabilização dos seus membros, quando descumprem o seu papel de obedecer à lei e à Constituição. O remédio para tanto é o impeachment. Entretanto, este é um instrumento, ao mesmo tempo, perigoso — porque cria o risco de que, com finalidades políticas ou inconvenientes, o magistrado perca o cargo — e difícil de se concretizar. Sua excepcionalidade o demonstra. Constituições estrangeiras preveem que, por maioria qualificada, decisões dos Tribunais sejam revogadas pelo Legislativo. Isto igualmente traz o perigo de fragilizar a Constituição, pois pode servir para manter norma contrária a ela ou ser usado sem comedimento, até para punir magistrado por critérios meramente políticos.

O que explica a expansão do poder do STF? Esse fenômeno tem contribuído para a instabilidade política do país?

O fenômeno de expansão do poder das Cortes constitucionais ocorre na atualidade em muitos Estados contemporâneos, conforme registra farta literatura. No Brasil, aponto algumas razões. Uma, o grande respeito que o STF herdou de seu passado na República, que lhe trouxe autoridade. Outra, a contenção com que no passado agia o Supremo, evitando descer à arena política. De fato, os ministros jamais tratavam de assuntos políticos para jornais ou em entrevistas sobre questões que chegariam às suas mãos para julgamento. Assim, era difícil apontar viés que não fosse jurídico em suas decisões. Neste século, porém, a radicalização tomou conta da política — e dele próprio. O modo de designação, ou seja, a escolha pelo presidente da República, também contribui para isso, pois o controle pelo Congresso, em geral, diz amém. Surge daí a tendência de considerar que ministros formam “bancadas” judiciais em apoio de quem os nomeou. E isto se torna difícil de refutar quando os escolhidos têm liame próximo e recente com o presidente ou com seu partido. O eventual descrédito que acarretam esses elementos contribui para o desprestígio da Suprema Corte e acentua o ambiente de radicalização.

O senhor acha que o STF viola de alguma forma as normas democráticas?

O juízo sobre isto é delicado. O STF se empenhou na defesa da democracia, mas entendeu que tudo o que, em sua consideração, servisse a essa finalidade era admissível. Seguiu a máxima maquiavélica de que o fim justifica os meios. E assim acabou, como já se disse, por instaurar uma juristocracia em lugar de uma democracia. No exercício dessa juristocracia, violou normas e valores constitucionais e democráticos. Um exemplo está na censura. Esta é proibida duas vezes pela Constituição (art. 5º, IX, e art. 220, §2º). E os inquéritos que ainda vigoram a levaram a ser feita constantemente — seja ostensiva, seja de modo oculto. A liberdade de expressão é um direito fundamental reconhecido desde a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) francesa, pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969). É peça essencial à democracia, sendo condição da liberdade e do funcionamento das instituições. O seu abuso é punível na medida em que a lei prevê. Jamais pelo entendimento exclusivo do “mais sábio dos sábios”.

Crédito Revista Oeste

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