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A herança colonial e escravocrata permanece nas relações cotidianas, onde o racismo, o apagamento e a desumanização de mulheres negras que cuidam de gerações sem serem reconhecidas são escondidos através de “afetos” tortos.
Recebi de uma amiga um vídeo de uma cantora branca celebrando a babá dos seus filhos, uma mulher negra idosa retratada com a legenda “a mamãe bá”, num tributo que, à primeira vista, parecia afetuoso. Mas, na essência, revelou-se um espelho cruel de um Brasil que nunca desfez suas amarras. Não importava o nome da senhora; o que ecoava ali era o silêncio do nome real da babá, reduzida a um rótulo que carrega afeto e submissão, amor e subserviência. Uma sombra acalentadora que é vista, mas não ouvida. O vídeo parecia uma ode, mas era uma canção triste de apagamento e hierarquia. Tinha amor, mas se ama uma coleção de canecas, coisas. Não se trata de sentimentos, até porque os canalhas também amam.
E assim, seguimos contando a velha história em tons modernos. Não é apenas tal cantora; são tantos, incontáveis, que não questionam a forma como perpetuam costumes coloniais. Enquanto os lares se erguem sob um verniz de progresso, ainda há nelas quartos apertados e horas incontáveis de serviço que nunca são mencionadas em conversas à mesa. O Brasil precisa olhar para essas práticas que disfarça de afeto e rever suas raízes que, em vez de nutrir a terra de equidade, a contaminam com a repetição das mesmas injustiças. É hora de ver além da “mamãe bá”, de reconhecer nomes, histórias, sonhos e dores que sempre estiveram ali, à sombra do conforto da branquitude do topo da pirâmide, às vezes no meio dela. PESSOAS que doaram a sua existência, que não construíram sua própria família ou que deixaram seus filhos para cuidarem dos filhos dos patrões.
O tema do Enem deste ano desnudou essa ferida. Jovens que nunca se preocuparam em saber o nome e a história da “bá” de suas casas, agora se viram diante da necessidade de escrever sobre o que sempre ignoraram – pessoas, culturas e contribuições sociais, tecnológicas e econômicas. A proposta os incomodou, levantou desconfortos e ofensas. Afinal, como explicar em uma redação as marcas profundas de um racismo herdado e aceito como normal? Como reconhecer, em palavras, que a “bá” que os criou não era apenas a sombra carinhosa de um lar, mas uma mulher com sonhos, dores e memórias tão legítimas quanto as de qualquer mãe ou pai?
O Brasil, apesar de suas muitas máscaras e artifícios modernos, segue o roteiro de um país que nunca se libertou verdadeiramente das correntes que o moldaram. As babás, essas mulheres cujo nome é trocado pelo monossílabo “bá”, são a prova viva dessa estrutura colonial que persiste, uma cicatriz aberta na sociedade que se proclama justa, mas que ainda se perde na repetição de seus próprios abusos.
Na casa dos senhores, a “bá” ocupa um espaço tão invisível quanto fundamental. Uma peça que, embora imprescindível, não tem nome, história ou memória. Ela não faz parte das fotos da família que serviu durante gerações – quando faz parte é “para inglês ver” (procure saber o motivo do surgimento deste termo); seu rosto se apaga entre os retratos felizes pendurados na parede. Quando a “bá” atravessa o tapete macio da sala, é como se flutuasse, um fantasma cuja existência é percebida apenas na ausência dos cuidados prestados. Mas quando ela fala, quando ri, quando repousa, a sociedade a coloca em seu lugar. Um lugar pequeno, sufocante, um quartinho estreito onde não cabe sequer o eco de sua própria voz. Diante disso, cabe perguntar: quem conhece a história da “bá”? Quem ousa conhecê-la? O nome dela é esquecido por conveniência, e, assim, perpetua-se um ciclo de apagamento. Quando essas mulheres falecem, as memórias das famílias que cuidaram por décadas não são passadas a limpo; elas se desvanecem como se nunca tivessem existido. “Aqui jaz nossa ‘bá’”, diria uma lápide apática, sem nome, sem origem, sem descendência. Uma placa indigna, que resume gerações de serviço e sacrifício a um papel sem rosto.
O racismo que a sociedade brasileira nega com veemência se esconde nos detalhes, no tratamento submisso e desumanizante. Os senhores e senhoras, que até acreditam amar essas mulheres, nunca entenderam que esse “amor” é enviesado, um reflexo de um poder que subjuga e acomoda. E é nesse jogo de sombras que o racismo se perpetua, disfarçado de afeto, de agradecimento e de generosidade – no fundo, migalhas. Não é suficiente não concordar com o racismo; é preciso reconhecê-lo nas próprias ações e, mais ainda, estar disposto a enxergar a violência implícita que se desenrola sob o mesmo teto.
O Brasil que ainda chama suas babás de “bá”, que as submete a quartos menores que armários e que não respeita seus horários de descanso, é o mesmo Brasil colonial, escravocrata, que insiste em se disfarçar de nação evoluída, democrática. Enquanto as histórias dessas mulheres forem silenciadas, continuaremos reescrevendo, em um ciclo cruel e interminável, um roteiro que nunca deveria ter sido escrito. É tempo de dar nome a quem sempre teve. É tempo de lembrar que a história de uma nação não se faz só dos que a comandam, mas, sobretudo, daqueles que, invisíveis, a sustentam.
Negros e negras foram arrancados de suas raízes e trazidos à força, despidos de suas línguas, histórias e nomes. Os nomes que carregavam, ecos de suas origens, foram apagados e substituídos pelos de seus senhores, marcas de um domínio cruel. Hoje, essa sombra persiste; essas pessoas, descendentes de sobreviventes, ainda caminham sem identidade plena, reduzidas a títulos que servem mais ao conforto alheio do que à verdade de suas existências. Os séculos passaram, mas o Brasil insiste em manter viva a prática de calar nomes e apagar histórias, deixando apenas um vazio onde deveria haver orgulho e reconhecimento.
A “sua bá” não é “quase da família”, até porque ela não herdará nada. E gente da família, o patrão e a patroa tratam como gente e tem nome e sobrenome.