Onda woke está tendo efeito reverso devido aos seus excessos; entenda

As últimas décadas foram de nítido avanço na luta contra o preconceito e a desigualdade. Em todo o mundo, as minorias — um leque que abrange negros, mulheres, imigrantes, homossexuais e pessoas trans — se beneficiaram de uma ampla e saudável revisão de julgamentos pela sociedade, que resultou na aprovação de leis garantindo seus direitos e punindo quem não os respeitasse. Assim caminhou a humanidade, com mais tolerância e aceitação, até a grita ultraconservadora ganhar força e um fosso se abrir entre ela e a banda mais progressista. A acentuada radicalização que se seguiu pegou em cheio os ventos de mudança social, permitindo que um grupo de zelotes tomasse a si a função de estender a teia de inclusão a limites extremos, atirando pedras para todo lado e recorrendo às redes para sumariamente cancelar todo e qualquer suspeito de discriminação — uma cruzada furiosa a que deram o nome de woke. Tanto provocaram e exageraram que o woke, depois de um pico de influência, entrou em acelerado declínio — fazendo ressurgir, infelizmente, o impulso para realimentar séculos de injustiças.

A onda woke (termo derivado do verbo to wake, acordar em inglês) é uma extrapolação do conceito do politicamente correto, nascido quase como piada nos alojamentos universitários dos Estados Unidos com o intuito de introduzir certa cautela no modo de as pessoas agirem e falarem, para não ofender ninguém. Com regras virtuosas, moralistas, chatas mesmo, foi abrindo espaço para a conscientização da necessidade de combater injustiças e promover maior diversidade e valorização de minorias. Ao radicalizar o que era um avanço paulatino, o woke mergulhou na intolerância que pretendia banir e deu um fatal tiro no pé.

Pegando carona no cansaço geral com a intransigência de seus métodos, o refluxo conservador disseminou um forte sentimento anti-woke na política, nas salas de aula, na cultura e nas redes sociais, exacerbado com tintas berrantes pela eleição de Donald Trump nos Estados Unidos — demonizar todas as coisas woke foi um dos três pilares da campanha, junto com imigração e economia. E sendo os Estados Unidos a câmara de eco do mundo, a implicância com causas meritórias, como a inclusão dos trans, o casamento gay e as cotas para negros, se alastra planeta afora.

O radicalismo woke é, de fato, um tanto incômodo. Apoderando-se de reivindicações válidas, insista-se, os extremistas “despertos” vestem um manto de superioridade moral ao decretar que todos os que não pertencem ao clube estão adormecidos, iludidos, errados. O instinto do movimento é encerrar qualquer debate — daí o pendor pelo cancelamento — e policiar o discurso, com proibição de termos “ofensivos” e uso da linguagem neutra como mandamento. “Virou um ativismo simbólico, que perdeu contato com a realidade”, diz Staci Zavattaro, professora de gestão pública da Universidade Central da Flórida.

Pesquisa recente da Gallup mostra que só 35% dos americanos se preocupam “muito” com questões raciais, 13 pontos a menos do que o pico de 2021. Já o Pew Research Center registra que a parcela dos que acreditam que alguém pode se identificar com um sexo distinto do atribuído ao nascimento cai desde 2017, primeiro ano do levantamento. O número dos que veem no machismo um problema grande também só tombou desde um apogeu de 70% em 2018, auge do movimento #MeToo, que expurgou de Hollywood e outros cantos homens poderosos que abusavam de mulheres.

Nascida e nutrida, ela também, entre os estudantes das universidades americanas de elite, a onda woke vem sendo cerceada no próprio berço. Um dos principais alvos são os programas de Diversidade, Equidade e Inclusão (DEI), iniciativas fincadas na pluralidade para levar em conta raça, gênero e sexualidade na contratação de professores e no ingresso de alunos. A militância direitista, que também desfila uma estridente banda radical, acusa a academia de elevar fatores como a cor da pele à condição de ingrediente decisivo na produção de saber e promover uma caça às vozes que julga dissonantes. Só a Universidade de Michigan, que pôs mais de 250 milhões de dólares em programas DEI, registrou, em 2023, 500 queixas contra mestres e funcionários por suposta má conduta. O assunto foi parar na Suprema Corte, de onde veio no ano passado a proibição das cotas raciais por “violarem o princípio de igualdade”. Desde então, nove estados baniram “declarações de diversidade” para contratar professores, requisito do qual Harvard e MIT abdicaram por pressão de doadores.

A guerra em Gaza agravou o cenário, ao incendiar protestos estudantis pelo país — mostras de antissemitismo e desordem nos campi viraram caso de polícia, e até a ultraprogressista Califórnia endureceu os procedimentos contra manifestações de alunos. “O ensino superior está imerso em uma luta ideológica, que reverbera nos variados escaninhos da sociedade”, diz Zavaratto. A torrente de polêmicas no cerne do woke caiu como uma luva nas mãos da direita conservadora americana. Nas eleições de novembro, Trump teve sucesso em colar a imagem de ineficiência e desordem do movimento à rival, Kamala Harris (a crer na propaganda de campanha, todo democrata é, por definição, woke). O Departamento de Educação entrou na mira por disseminar ideologias “radicais”, segundo o presidente eleito, que prometeu tirar do currículo escolar assuntos como história africana e questões de gênero. “Sua vitória exacerba ao máximo a luta contra tudo o que é woke”, afirma o historiador Andrew Hartman, da Universidade Estadual de Illinois.

Seguindo nessa trilha, a Suprema Corte — de maioria conservadora graças a três indicações no primeiro mandato trumpista — acaba de iniciar deliberações sobre um caso que pode restringir ainda mais procedimentos médicos de transição de gênero para menores de idade. E o mercado já se adapta à nova realidade, com empresas abandonando seus programas DEI e peças publicitárias com conteúdo de diversificação. No fim de novembro, o gigante Walmart anunciou que deixará de fazer pesquisas sobre igualdade corporativa, fechará um centro de equidade racial e abandonará o uso de termos como diversidade e inclusão. Nem Hollywood, berço do feminista #MeToo, saiu ilesa: o diretor Francis Ford Coppola diz que fez questão de contratar estrelas canceladas e “conservadores ferrenhos” para seu filme Megalópolis e não quer saber de “produções woke que tentam evangelizar os espectadores”.

Na França, o presidente Emmanuel Macron moveu uma cruzada contra a priorização da questão identitária e da valorização dos excluídos no debate acadêmico. O Reino Unido empossou o filósofo Arif Ahmed como “czar da liberdade de expressão”, um cargo cujo objetivo é caçar e multar universidades e grêmios estudantis que barrem palestrantes conservadores “sem um bom motivo” (cortar a voz de quem é do contra, diga-se, tem destaque na cartilha woke). Aqui no Brasil, como nos Estados Unidos, a exacerbação de questões identitárias, que sensibilizam menos os eleitores do que a inflação que aperta o bolso, foi pedra angular da derrota da esquerda nas eleições deste ano. Em São Paulo, Guilherme Boulos (PSOL) tentou atenuar o discurso radical e abandonou temas como a legalização do aborto e da maconha, mas o que ficou na memória foi quando uma cantora usou pronomes neutros durante a execução do Hino Nacional em um de seus comícios. “Quando os esquerdistas não se manifestam contra o extremismo de seus pares, perdem votos para o centro e a direita”, disse a VEJA a filósofa americana Susan Neiman, autora de A Esquerda Não É Woke.

A cultura woke, ainda sem esse nome, começou a transbordar da academia ao longo da última década, mas se intensificou, radicalizou e foi batizada em 2020, quando o antirracismo virou brado mundial depois que um policial branco estrangulou até a morte o negro George Floyd na rua, à luz do dia, em Minnesota. A partir daí, o termo, cunhado nos anos 1930 para designar a necessidade de alerta constante contra o preconceito racial e assim usado por Martin Luther King e outros ativistas, ganhou as redes e passou a englobar um saco de gatos de questões identitárias levadas a extremos. É pena que seja assim. A ebulição após a morte de Floyd levou o presidente americano, Joe Biden, a assinar uma ordem executiva para criar um banco de dados nacional que registra casos de má conduta policial e tornar obrigatórias investigações de casos de uso de força letal por agentes da lei. O movimento #MeToo fez 25 estados americanos apresentarem mais de 2 300 medidas antiassédio entre 2017 e 2021, das quais cerca de 300 foram aprovadas.

Diversidade, tolerância, respeito, reparação de desigualdades — tudo isso é legítimo e merece ser levado em conta, sempre, sempre, mas acabou posto em risco devido ao cansaço com a ira moralista dos censores de plantão, provando que a radicalização da cultura woke fez mais mal do que bem às causas pelas quais milita. Remover as manchas do tecido social requer, antes de tudo, cabeça aberta e equilíbrio — artigos raros no mundo polarizado de hoje.

Fonte: Veja

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